Homilia na Morte de Eduardo Lourenço
José Tolentino Mendonça

Estamos aqui num dos mais emblemáticos lugares portugueses, neste “jardim de pedra” como um dia Eduardo Lourenço chamou ao Mosteiro dos Jerónimos; estamos aqui mulheres e homens, crentes e não crentes, no contexto desta liturgia cristã para expressar a mais comovida gratidão pela vida de Eduardo Lourenço.

Normalmente a morte tem uma dimensão pessoal e o luto que nos atinge, desabrido, ardente e radical, tem uma conjugação no singular. Eduardo Lourenço também viveu assim os seus lutos. Lembro um dos últimos, há precisamente sete anos atrás, quando morreu a sua mulher, Annie. Há um manuscrito de Lourenço onde se pode ler: “A Annie acaba de morrer. Eram quatro horas menos um quarto deste 1º de Dezembro, de 2013...” E continua: “A longa agonia silenciosa da Annie [...] restitui à vida uma espécie de esplendor póstumo, o da ausência tornada enfim sensível. De fora fica apenas o lençol branco da minha inexistência sem ela.” Ou recordo um dos seus primeiros lutos, sigilado na forma de dedicatória do seu livro de estreia, quando corria o ano de 1949: “em memória do Cap. Abílio de Faria e de Maria de Jesus Lourenço, meus pais”.

Quase quarenta anos mais tarde, numa reedição dessa obra inaugural, que como se sabe é “Heterodoxia I”, Eduardo Lourenço escreveu um prefácio intitulado “Escrita e morte”. Da leitura desse texto (que na verdade é um precioso exercício de releitura que o escritor faz de si, e da génese do seu percurso) há duas declarações que se destacam. A primeira diz respeito apenas ele, pois se trata da confissão pessoalíssima do impacto incalculável que nele teve o luto dos seus pais: “Este livro foi publicado quatro meses após a morte do meu pai. Minha mãe morrera um ano antes. Sem a sua morte nem estas páginas, nem nenhumas outras [...] teriam existido”. Mas a outra declaração diz respeito a todos nós, pois lhe serve para explicar a sua vocação ensaística. O ensaio, diz ele, “é a forma escrita do discurso virtual de uma existência que renunciou às certezas, mas não à exigência de claridade que nelas, em permanência, se configura. Em boa verdade – continua – não há ensaísmo feliz. Na sua essência é uma escrita do desastre, pessoal ou transpessoal. Para ser mais justo, é uma estratégia natural para tempos calamitosos, como os de Montaigne. [...] Retirado na sua torre, o autor não se desinteressou dos negócios humanos – nem mesmo dos divinos -, limitou-se a retirar a caução transcendente ao que visivelmente era da ordem do puramente humano, relativizando o olhar dos homens sobre os seus próprios atos... A tragédia está na história, é inerente à história. Adotar a perspetiva ensaística não é ignorá-la, é tentar precariamente – sem isso cederíamos à paixão totalitária – contê-la nos limites do humanamente aceitável”.

Há lutos que se vivem no domínio pessoal, pois dizem respeito à nossa pequena história. E há lutos que excedem esse domínio, pois se configuram como uma experiência de perda coletiva. Escutando este parágrafo programático de Lourenço percebemos como o seu luto tem para nós essa natureza. Quando morre um escritor, a literatura fica enlutada. Mas também acontece - mais raramente é verdade, mas acontece – que, com alguns escritores, a própria literatura, ou uma ideia de literatura ou uma inteira época da literatura morra com eles. Pois naquele criador que partiu os leitores de uma geração (que até pode ser de uma geração futura) reconhecem uma razão, uma sabedoria, uma verdade ou um fulgor onde se encontraram refletidos, interrogados, transportados a uma fronteira de si próprios e do mistério. Isso que, por exemplo, Pietro Bembo esculpiu tão bem como epitáfio no túmulo do pintor Rafael: «Aqui jaz Rafael, que enquanto vivo a natureza temeu por ele ser vencida; mas que agora morto a natureza teme morrer com ele». Com razão, todos tememos morrer um pouco na morte deste homem que jaz hoje diante de nós.

Mas ensinar a morrer é, como dizia Cícero, o objetivo do mestre que ensina a filosofia. E Montaigne, o inventor moderno dos ensaios, escreveu que quem aprendeu a morrer venceu a sujeição, ultrapassou já a condição de escravo. A Eduardo Lourenço devemos a lição de interrogar não só a vida, mas também a morte com sabedoria, distanciamento e serenidade, lutando para conter a história nos limites do humanamente aceitável, tarefa como sabemos trabalhosa e inacabada, mas também indeclinável se quisermos que a civilização e o humanismo sejam mais do que uma abstração. A Lourenço devemos além disso uma rara capacidade de cuidar da ideia de comunidade, reforçando sempre o nosso conjunto como nação, elucidando a experiência de bem comum que é um país, indicando a cartografia mental e espiritual sem a qual não se entende a geográfica nem nenhuma outra, mostrando-nos, por exemplo, que todos somos habitantes da solidão de Pessoa e do profetismo de Antero ou de Agostinho da Silva, do levantamento do chão de Saramago e dos acordes insubmissos de Lopes Graça, da religiosidade que uniu Régio e Manoel de Oliveira, dos socalcos durienses de Agustina e da praia lisa que Sophia sonhou. Nos milhares de páginas que escreveu, talvez se veja que a ideia de comunidade foi aquela que afinal ele mais perseguiu e que esta constituiu a sua paixão maior.

Teixeira de Pascoaes, que escreveu “Arte de ser português”, quis ser enterrado num caixão em forma de lira. O caixão de Eduardo Lourenço tem, qualquer que seja a sua forma, a forma de Portugal, do qual ele foi (e será para muitas gerações futuras) um explorador e um cartógrafo, um detetive e um psicanalista do destino, um sismógrafo e um decifrador de signos, uma antena crítica e um instigador generoso e iluminado. Depois dele, todos podemos dizer que nos entendemos melhor a nós próprios.

Escutamos nesta Eucaristia um trecho do livro de Job, a mais inconformada figura sapiencial da Bíblia, na qual cada um de nós pode rever, como em espelho, a sua inquietação e ver ativado o motor de busca das próprias interrogações. Na liturgia hodierna a voz de Job soa como uma espécie de grito: «Quem dera que as minhas palavras fossem escritas num livro, ou gravadas em bronze com estilete de ferro, ou esculpidas em pedra para sempre!». Este grito abre-nos à escuta das razões profundas que estão por detrás da invenção dos alfabetos e da escrita, ajuda-nos a compreender que a história do livro não é apenas a história cultural de um artefacto utilizado para a transmissão do conhecimento. A história do livro é, antes de tudo, a história do desejo humano de permanecer, de vencer a morte, de experimentar sobre a terra algo mais do que uma precária verdade destinada ao esquecimento. Voltamos sempre à mesma sede de transcendência, à mesma desabalada paixão de eternidade, ao mesmo dramático grito para que a existência humana não se consume como mera passagem. Tornamos sempre, para recorrer a uma expressão de Lourenço, à “insepulta nostalgia de Deus”.

Nostalgia de Deus que era também a dele. Um dia na televisão alguém o interrogou: “Professor, o que pensa de Deus?”. E a resposta dele abriu um alçapão, trazendo à superfície aquele arrepio sideral do infinito de que falava Pascal. “Sabe - respondeu ele calmamente -, mais importante do que dizer o que penso de Deus é saber o que Deus pensa de mim”.

É precisamente daí, da contemplação do que Deus pensa de nós, que São Paulo partirá para escrever a intensa página que hoje proclamamos: “Eu penso que os sofrimentos do tempo presente não têm comparação com a glória que se há-de manifestar em nós. Na verdade, as criaturas esperam ansiosamente a revelação dos filhos de Deus. Sabemos que toda a criatura geme ainda agora e sofre as dores da maternidade. E não só ela, mas também nós, gememos interiormente, esperando a adopção filial”.

Quem conheceu Eduardo Lourenço ouviu-o certamente rir e sorrir muitas vezes: com os outros, consigo mesmo, com as histórias que contava, com as suas curiosidades, as suas manhas de contador, os seus deleites. E recordará para sempre essa associação entre alegria e sagacidade, entre aquela extrema inocência que nos surpreende nos muito sábios e aquela inimitável ironia que nele era também um modo de maturação e de juízo. A imagem dele a sorrir há de, por isso, acompanhar-nos. Só uma vez o vi chorar. Fiquei completamente desconcertado, porque nada na nossa conversa me alertara para a eminência daquela sua emoção torrencial. Estamos a falar de textos bíblicos, saltando sem cautelas de uma personagem para outra e, de repente, ele tropeçou, como o apóstolo Paulo terá tropeçado, na palavra Jesus. E os seus olhos se encheram de água e a voz de silêncio e soluços. Passou muito tempo para que me dissesse chorando. “Não há nada superior a Jesus. Já imaginou um Deus que diz bem-aventurados os pobres, os humildes, os misericordiosos, os puros de coração, os perseguidos, os que têm fome e sede de justiça, os que promovem a paz”. Não há nada superior a isto”.

Agradeçamos ao Deus dos vivos e dos mortos; agradeçamos ao Deus fiel a todas as nossas perguntas, sobretudo àquelas para as quais não encontramos resposta; agradeçamos ao Deus que se debruça sobre as nossas procuras, que anota estes nossos passos balbuciantes, este nosso tatear como se na ausência víssemos o invisível; agradeçamos ao Deus das Bem-Aventuranças as palavras que Eduardo Lourenço nos iluminou sorrindo e aquelas para cujo sentido ele nos abriu chorando.