Maria de Lourdes Martins de Azevedo Soares estudou na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Licenciatura, 1985) e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Mestrado, 1988; Doutoramento 1994). Os seus interesses incluem a literatura portuguesa, a ficção portuguesa contemporânea, a literatura infanto-juvenil e as obras de Maria Gabriela Llansol e Eduardo Lourenço. É a responsável pela organização e prefácio do volume de Eduardo Lourenço Do Brasil: Fascínio e Miragem (Gradiva, 2015) e publicou, na revista Românica, “Correspondência Casais Monteiro-Eduardo Lourenço: 4 cartas inéditas” (2016). Entre outros, é a autora dos artigos “Eduardo Lourenço e a censura no Estado Novo” (Colóquio/Letras, 2016); “Eduardo Lourenço e Maria Gabriela Llansol: «um lugar real de escrita e leitura»” (Colóquio/Letras, 2015); «O ensaio epistolar de Eduardo Lourenço: hibridismo, heterodoxia, liberdade» (Abril, 2011) e «Eduardo Lourenço e Glauber Rocha ou o quarto sertão» (Convergência Lusíada, 2000). Actualmente é professora adjunta (aposentada) da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O relógio dos 500 Anos e o tempo brasileiro

Maria de Lourdes Soares

O ensaio “Quinhentos Anos” foi publicado em Visão, Lisboa, 17/09/1998, p. 114. No Acervo Eduardo Lourenço-Dossier Tempo Brasileiro há uma versão datilografada (4 p.), assinada, com correções manuscritas, datada em Vence, 7/09/1998, significativamente, dia da Independência do Brasil. Há também um manuscrito (4 p.) intitulado “500 Anos”, não datado nem assinado, provavelmente uma primeira versão do texto publicado.
A versão manuscrita, cujos dois primeiros parágrafos assemelham-se a uma anotação diarística, possivelmente foi escrita durante uma das visitas de Eduardo Lourenço ao Brasil, quando ficou hospedado num hotel da Avenida Atlântica (Rio de Janeiro), próximo ao painel1 com o relógio das comemorações dos 500 Anos. Tendo em vista as menções ao inverno (no Brasil), à campanha das eleições presidenciais e, sobretudo, à indicação temporal do relógio de contagem regressiva, a data provável desta versão é Agosto de 1998.
O texto publicado apresenta algumas diferenças em relação ao manuscrito, nomeadamente na parte inicial e nos últimos períodos do parágrafo conclusivo. Todavia, as diferenças são menos significativas do que as semelhanças, uma vez que a ideia nuclear e os seus desdobramentos permanecem. Em ambos, a partir da observação atenta da legenda do painel electrónico – “Faltam 599 Dias” e, sob esta inscrição, outra, com caracteres maiores, “500 ANOS” –, Eduardo Lourenço reflete sobre as diferentes leituras, na perspectiva de um brasileiro e na de um português, de um acontecimento fundamental dos três séculos de história comum. Como português, importa-lhe ressaltar o que não está inscrito na mensagem do painel, a ausência da “palavra ‘Descoberta’, coração da mitologia portuguesa”, e que evidencia a rasura da raiz lusitana por parte dos brasileiros. O olhar do ensaísta completa o que a legenda do painel omite: Faltam 599 Dias... para os 500 Anos da “chegada de Cabral” às futuras praias brasileiras.
Em torno e partir desta ideia central, Eduardo Lourenço desenvolve outros tópicos, presentes nas duas versões: os 500 Anos da entrada do Brasil na História, da sua inscrição “num quadro temporal” trazido e partilhado pelo descobridor-inscritor, o da História Universal; a “futura festa” do Brasil como “não-descoberto”, “comemoração em forma partenogênese”, “sozinho”, ou como se o fosse, como se tivesse nascido de si mesmo, “Vênus das nações” saída da espuma do mar; a “temporalidade brasileira, uma temporalidade plena”, “sem exterior”, em que o seu próprio passado, conforme a bela imagem a que recorre para expressar a complexidade do tempo brasileiro, “desfaz-se como espuma contra a vaga de um presente avassalador que rola sobre si mesma como um futuro”.


O painel com o relógio de contagem progressiva foi criado no final de 1997 pelo designer Hans Donner, responsável pela programação visual da Rede Globo. Na parte superior do painel retangular, um relógio em forma de círculo reproduzia a face do globo terrestre em que se situa a América do Sul. No centro desta, destacado em verde, o mapa do Brasil. Os ponteiros que marcavam horas e minutos eram brancos e o dos segundos, amarelo, em forma de uma seta, apontava para o meio do mostrador, o Brasil. O significado era claro: o país verde e amarelo era o centro dos olhares do mundo. Na parte inferior do painel, um contador digital, com a legenda “Faltam ... Anos”, fazia a contagem regressiva para o dia 22 de Abril de 2000. Embaixo do contador, a inscrição “500 Anos”. Réplicas desse relógio-símbolo foram instaladas em Porto Seguro (Bahia) e em diversas cidades brasileiras, entre as quais o Rio de Janeiro. Em muitas delas houve manifestações de protesto. O relógio do Rio de Janeiro foi depredado por manifestantes em Abril de 2000, após a encenação de um grupo de alunos do curso de Artes Cênicas da Universidade do Rio de Janeiro (Uni-Rio) da peça “Notícias do Brasil 500 Anos – para não comemorar”, escrita pelos próprios estudantes universitários.
500 ANOS

Sem aquele meio quilómetro de gradeamentos agressivos ao longo de tanto hotel de luxo e prédios mais luxuosos ainda, a Avenida Atlântica, com o seu tapete de areia fina a perder de vista, podia ser um recanto do paraíso. Aquele que Cabral – ou Caminha por ele – avistaram quando ainda não se chamava Brasil. É inverno. A terra que o mesmo Cabral julgou descobrir está em véspera de eleições e, noite e dia, desfilam com tambores, cartazes, alto-falantes, pequenas bandas coloridas para animar o carnaval institucional. Ao pé do outro parece uma sucessão de festinhas de província desenhadas a meias por um Duffy brasileiro e Walt Disney.

Diante do nosso hotel um painel publicitário lembra-nos que não estamos exactamente na província, mas no centro de um continente. Reparando melhor, no centro do mundo. O painel é ocupado pela Terra em forma de laranja azul, como a sonhou Paul Éluard e a viram dos altos céus todos os Titov e Armstrong. No meio do globo a América do Sul, devorada por uma bela mancha verde, o Brasil. Até aqui nada de particular. O Novo Mundo sabe onde está e o Brasil ainda melhor. A imagem serve de quadrante sobre o qual deslizam dois ponteiros de relógio, marcando horas e segundos. Sob o continente-relógio uma legenda elucida o passeante: “Faltam quinhentos e noventa e nove dias”. Em letras mais espectaculares, uma outra precisa a mensagem: “500 anos”.

Para um brasileiro, mesmo de poucas letras, a mensagem é clara: o Brasil fará meio milénio de existência dentro de pouco mais de ano e meio. Para um português com algumas letras a mensagem é outra. O importante não é o que está no relógio planetário, mas o que está ausente da legenda. A palavra “descoberta”. O Brasil vai celebrar os seus quinhentos anos de existência. Seria melhor dizer, de emergência. De que espaço? A questão é sem sentido. Nação-continente, lentamente construída ao longo de cinco séculos, como espaço e natureza, é contemporânea de si mesma. Nesse sentido, é incomemorável. Aqueles 500 anos referem-se à História, à sua inserção num quadro temporal que se convencionou ser também o da História Universal. É essa entrada na História, o seu nascimento – pese à cronologia antropologista – que o Brasil vai comemorar. Sozinho ou como se o fosse. Como se tivesse nascido de si mesmo, morena Vênus das nações saída da espuma dos mares. E aquele continente nu bem merece a hipérbole. Todas as hipérboles.

Para os portugueses que há quinhentos anos também – curiosa coincidência – imaginaram “descobrir” as terras de Santa Cruz, esta comemoração em forma de partenogénese parecerá historicamente inviável e moralmente uma ingratidão. E aquela inscrição dos 500 anos um mero lapsus, a que bastaria acrescentar qualquer coisa como “a chegada de Cabral” para que tudo entrasse na ordem das coisas. Na nossa de portugueses.

Queiramo-lo ou não, a dos brasileiros, que é a da sua identidade de hoje, do seu tempo de hoje, identidade e tempo brasileiros, porventura sem centro nem raízes, mas sem exterior, se numa perspectiva historiográfica herdada da nossa, de europeus e descobridores, se pode imaginar abstractamente ligada a um tempo não-brasileiro, a temporalidade brasileira deste fim de milênio é uma temporalidade plena. Paradoxalmente plena, pois extravasa já para o resto do continente quando no interior das suas fronteiras continua a subir como uma maré cheia. O passado – inclusive o mais já seu e próximo – esboroa-se, desfaz-se como espuma contra a vaga de um presente avassalador que rola sobre si mesma como um futuro. O seu passado colonial é pura pré-história quando lhe sobra tempo para o evocar. E o tempo indígena o seu tempo futuro, ao mesmo tempo mítico, aquele onde já não tem nenhum sentido comemorar nada. Sobretudo o seu “nascimento” a partir de uma origem que tem de se apresentar não só simbolicamente, mas sensualmente, como não-Brasil. É por isso que não devemos estranhar a futura festa que o Brasil se dará a si mesmo como “não-descoberto”.

Vendo bem, o painel onde estamos soberbamente rasurados é uma boa lição para nós. Mais a mais nestes tempos de euforia neo-imperial puramente onírica. Nós não “descobrimos” o Brasil. Não havia naquelas praias de sonho entrevistas por Caminha nenhum Brasil a descobrir. Em humanidade, maravilha e graças naturais, aquelas terras sem nome comum já tinham dono. Mas havia – segundo uma lógica de expansão e violência que ia conosco como com a humanidade inteira desde Caim – uma terra a explorar, um mundo a conhecer, uma nação a inventar antes mesmo de existir. Foi a sua invenção que se tornou Brasil e quem a inventou brasileiro por tê-la inventado.