Jaime Brasil
(Angra do Heroísmo, 1896-Lisboa, 1966)
Paris, 9 de Dezembro de 1949


Exmo. Sr. Dr. Eduardo Lourenço:

Recebi a obra1 de V. Exa., que vou ler com atenção, para fazer dela uma notícia em “O Primeiro de Janeiro”. Espero que V. Exa. terá mandado para lá os exemplares habitualmente enviados aos jornais.
Agradeço a amabilidade do envio e a generosa alusão à minha heterodoxia. Nenhum título me é mais grato do que o de heterodoxo. Desconfio muito dos ortodoxos, daqueles que sabem e têm certezas. Por mim, sou apenas um pobre homem que duvida e humildemente confessa a sua ignorância. Em ideologia, religião, política, não sei distinguir qual a boa e verdadeira. Será por não mo explicarem de modo a convencer-me; será por ser muito rude de entendimento. Em qualquer dos casos, que poderia fazer para acreditar? Como não sei, não creio. Busco sempre as possíveis vias do conhecimento, pronto a retractar-me amanhã do que disse ontem, a confessar o meu erro, quando vir surgir a evidência da verdade.
Não é uma atitude cómoda a de remar contra a maré das ideias-feitas, dos pensamentos estereotipados, dos “slogans”. Refugio-me num individualismo, que parece não ser moda, recusando-me a ser, voluntariamente, rês de rebanho. Isto é muito mal visto, porque quem não se arregimenta numa loja, numa igrejinha, num partido, está condenado a ser por todos suspeitado de inimigo e tratado como tal. Tenho sofrido e sofro as consequências dessa atitude; mas, já agora, é tarde para mudar.
Vejo que V. Exa., que deve ser um homem novo, se interessa pela heterodoxia. Rejubilo. Se alguma coisa me punge é ver os jovens “engagés”, como os velhos, adorando ídolos, fanatizados por doutrinas, acarneirados também. Alio à ideia de juventude as de independência, de inconformidade, de rebeldia mesmo. Esperava que este meado do século fizesse pujar tais atitudes, como o final do passado deixava entrever. Parece que me enganei, pois, tanto dum lado como doutro, o fanatismo é o mesmo.
Espero que da obra de V. Exa. Algumas lições se extraiam no sentido da sã, da criadora, heterodoxia. Vou lê-la e fazer o meu juízo; mas já pela coragem do título felicito V. Exa.
Creia V. Exa. na viva admiração e gratos sentimentos com que sou um muito devotado e atento

Jaime Brasil


1 Eduardo Lourenço, Heterodoxia, Coimbra, Coimbra Editora, 1949.
Artur Jaime Brasil Luquet Neto foi escritor e jornalista. Depois de uma curta carreira como oficial do Exército, foi um dos fundadores e o primeiro secretário-geral do Sindicato dos Profissionais de Imprensa de Lisboa, antecessor do Sindicato dos Jornalistas. Quando a Censura o proibiu de assinar os seus artigos, utilizou os pseudónimos A. e A. Luquet.
Jaime Brasil destacou-se pela sua obra pioneira sobre a sexualidade humana e o controlo da natalidade. Numa época em que o tema era fortemente estigmatizado, Brasil publicou, entre outros, os livros O Problema Sexual (1931) e A Questão Sexual (1932). Considerados ofensivos da moral pública, foram proibidos de circular e em boa parte apreendidos. A publicação destas obras, bem como as suas posições políticas, de cariz libertário e anarquista, valeram-lhe polémicas com a imprensa católica e o exílio em França e Espanha.
Após ter regressado do exílio, foi redactor de O Primeiro de Janeiro, no Porto, onde trabalhou até 1959, transitando depois para Lisboa, como chefe da delegação daquele diário portuense, cargo que exerceu até morrer em 1966.
Jaime Brasil criou páginas literárias nos jornais A República e O Primeiro de Janeiro, em cuja página Das Artes, das Letras, colaboraram alguns dos mais conhecidos autores das décadas de 1940 a 1960, entre os quais se contam Eduardo Lourenço, José Régio, Casais Monteiro, Gaspar Simões e Jorge de Sena.