João Palma Ferreira
(Lisboa, 1931-Lisboa, 1989)
João Palma-Ferreira
ERAS, 7, 3.º - B
Salamanca
España

Las Eras, 15-3-1974

Meu caro Eduardo Lourenço

Acabo de receber o seu Pessoa Revisitado que, em Lisboa, quando por lá estive, entre finais de Fevereiro e inícios de Março, já tinha começado a ler, com entusiasmo e o interesse que as suas publicações sempre me despertam. Passei, então, uma tarde com o Vergílio e com a Regina e falámos quase tanto do seu livro como do livro do Spínola1, a grande e obscura sensação «política» do momento. Acabarei, agora, o Pessoa Revisitado nos meus últimos tempos salamantinos e, de qualquer modo, já encomendei o livro para a biblioteca do Seminário de Português.
Com mais vagar, naturalmente, e quiçá em Lisboa, poderemos falar do seu «criacionismo» crítico em relação ao poeta e do muito que o seu livro vem ajudar a neutralizar uma demasiada habilidade estilística que, por ir de voga, parece desejar tentar reduzir as proporções de Pessoa a uma beatéria compendial e literária capaz de o transformar, meramente, em objecto de culto bafiento das caves do Vaticano de ínfimas universidades e assembleias de pusilânimes. O seu livro, pelo que dele já conheço, é um estudo claro, inteligente, talvez ousado mas, enfim, pessoal. Não exala o mesmo odor de estilismos que irritam e que começam a deixar-nos um tanto saturados. A sua valorização de António Mora, por exemplo, e que só é possível por intermédio de quem tem uma boa educação filosófica, é «revolucionária» nos estudos sobre Pessoa, encaixados, com[o] estão, até agora, os heterónimos numa galáxia de que o sol habitual é Alberto Caeiro. Por outro lado, a sua ousada interpretação, - se bem o entendo -, de um homossexualismo refreado, em certos aspectos, e «revelado», noutros, dos heterónimos, passível de discussão, não deixa, no entanto, de abrir novas pistas e de propor estudos e investigações distintas das habituais. Em suma, teremos de conversar mais pacatamente sobre tudo isto… tanto mais que, segundo consta, eu irei, com outros, a «aprender» consigo, em Lisboa, na Universidade Nova. E creia, terei imenso gosto em ouvi-lo e em considerar-me seu discípulo, sobretudo nestes caminhos de Fernando Pessoa.
Dou-lhe, agora, notícias minhas. Depois de quatro anos seguidos a estudar a Espanha e a aprender (à minha custa) a literatura e a cultura espanholas, regresso a Lisboa para prosseguir esse estudo, um pouco como Cadahalso ao regressar de Marrocos… cheio de paisagem e de ambiente. Suponho ter adquirido, nestes anos, uma sólida formação cultural em temas hispânicos e acumulei numerosas aventuras culturais que, em devido tempo, desejo converter em livro. Note-se, porém, que desejo fazê-lo sempre como o eterno estudante que serei toda a vida, embora os meus quarenta e dois anos me permitam, talvez, a lúcida e desencantada posição de um quase Vidriera, ou de um Barrionuevo que para si escreve o que o outro, o do século XVII, escrevia para o incógnito deão de Zaragoza.

Meu caro Amigo: ficaremos, portanto, de nos encontrarmos em Lisboa, se a Universidade Nova for para diante e se os Generais o permitirem.

Creia-me, sempre muito seu amigo e admirador, e apresente cumprimentos a sua mulher. Seu,

João Palma-Ferreira.

1 SPÍNOLA, António de, Portugal e o Futuro: Análise da Conjuntura Nacional. Lisboa: Arcádia, 1974.
Ficcionista e prolífico crítico literário, João Palma Ferreira nasceu, em Lisboa, em 1931, e morreu, também nessa cidade, em 1989. Licenciado em Filologia Germânica, foi professor do ensino secundário e do ensino superior, na Universidade de Salamanca e na Universidade Nova de Lisboa, e leitor do Instituto de Alta Cultura. Foi adido cultural da embaixada portuguesa em Madrid e director da Biblioteca Nacional (1980-1983). A ele se deve a criação da Área de Espólios, hoje Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea, da Biblioteca Nacional de Portugal. Entre 1983 e 1986, passou pela Presidência do Conselho de Administração da Rádio Televisão Portuguesa. Foi, igualmente, tradutor e leitor atento da literatura inglesa e norte-americana. Colaborou em publicações como Anteu: Cadernos de Cultura, Colóquio/Letras, JL, e dirigiu a revista Critério. Entre 1958 e 1969, assinou a página cultural do Diário Popular. É o autor de um interessante Diário, cujo segundo volume, dedicado ao período de 1972 a 1976, tem como subtítulo …Porque é tão difícil ser português.
O Acervo de Eduardo Lourenço possui 15 cartas de João Palma Ferreira, escritas em Salamanca e Lisboa, entre 1972 e 1988.