Mécia de Sena
(Leça da Palmeira, 1920)
Santa Barbara, 12/4/83

Meu caríssimo Eduardo Lourenço.

Tudo de volta à normalidade – a casa em silêncio grande parte do dia, a aplicação ao trabalho que tenho muito mais atrasado do que desejaria, a saudade que me ficou de vós e de tanta outra gente que logo a seguir passou por aqui tão de repente que quase me dou a pensar que nada se passou.
E fui seguindo a vossa trajectória – que a vossa ida à Disneylândia foi, pelo menos para os dois pequenos, divertida, que a Joaninha gostou imenso de vos conhecer, que Harvard foi um sucesso retumbante, que lá conheceu o «nosso» Joaquim1, etc. Só não sei se foi bom o vosso regresso mas espero que sim.
O primeiro trabalho em que peguei foram as «vossas» cartas porque estando praticamente feito o trabalho assim o posso já arrumar. Tenho contudo duas pequenas coisas que espero me possa resolver:
Uma sua carta de Nice, 12 de Janeiro de 1969 – na linha 7 diz:… «não me ? (meti? envolvi?) – pode verificar na fotocópia que deverá ter?
Na dedicatória de que lhe mando fotocópia há uma palavra que igualmente não decifro: a que, entre aspas, está na penúltima linha:… «a que o neo-realismo serve de «?»
Junto lhe mando a minha nota (tem outra mais breve ainda mas de explicação da organização, sem mais), que poderá sofrer alguma correcção (sobretudo das malditas vírgulas a que sou alérgica), e vai neste correio à provação do Joaquim (uma vez que ele é o designado executor literário nada faço sem a sua aprovação por perfunctória que ela seja por delicadeza dele). Acha bem? Aguardarei resposta sua para tudo enviar ao Graça Moura2.
Não vou repetir-vos de quanto gosto me foi ver-vos aqui e de como foi enorme a minha tristeza pelo gosto que ao Jorge não foi dado. Soube de resto que vocês fizeram questão de o visitarem e lá vi mesmo as vossas flores que simbolizaram o vosso comovente gesto – muito obrigada.
E aqui ficam as saudades afectuosas para os três da
Mécia de Sena.

1  Joaquim-Francisco Coelho, professor no Departamento de Línguas e Literaturas Românicas da Universidade de Harvard.
2 Vasco Graça Moura, administrador da Imprensa Nacional-Casa da Moeda entre 1979 e 1989.
O Acervo de Eduardo Lourenço guarda cerca de 100 cartas de Mécia de Sena escritas entre 1976 e 2013. Em comum, uma inteligência crítica e uma dedicação inabalável à obra do marido, Jorge de Sena (1919-1978). A carta aqui publicada foi escrita após uma visita de Eduardo Lourenço, Annie Salomon de Faria e Gil de Faria aos Estados Unidos da América. Entre outras actividades, Eduardo Lourenço participou no II Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, que decorreu na cidade de Nashville, entre 31 de Março e 2 Abril de 1983. Ao longo dos anos, e após a morte do marido, Mécia de Sena transformou o número 939 de Randolph Road, Santa Barbara, num «verdadeiro centro de estudos e divulgação da obra de Jorge de Sena», recebendo investigadores e académicos. Em Abril de 1983, Mécia de Sena preparava a edição da correspondência entre Eduardo Lourenço e Jorge de Sena, que veio a ser publicada pela Imprensa Nacional-Casa de Moeda em 1991 (Correspondência/ Eduardo Lourenço, Jorge de Sena; org. e notas de Mécia de Sena. Lisboa: INCM, 1991).