António José Saraiva
(Leiria, 1917-Lisboa, 1993)
António José Saraiva
Calçada do Galvão 35 r/c Esq.
Tel. 636362 LISBOA


Meu Caro Eduardo Lourenço

Acabo de ler o seu Pessoa Revisitado. Não conheço nada tão lúcido sobre o «meu poeta» (traduzo o «mi poeta» de Faria e Sousa). A sua ideia de que Caeiro nasceu de Whitman, como forma de o integrar num universo conceptual, e portanto ao mesmo tempo que Campos, é luminosa como um relâmpago. Também adiro à ideia da «ocultação», embora pense que esta pertence a uma explicação genética-psicológica e que a criação de Caeiro tem outra causa que v.[ocê] mesmo aliás aponta no último capítulo. Caeiro foi despertado por Whitman, como v.[ocê] o mostra; mas, independentemente disso, ele era indispensável, necessário, no que, afinal, somos obrigados a chamara o «cosmos poético de Pessoa».

Outra grande ideia sua é a dos dois polos míticos – Caeiro e Pessoa-Rosacruz. Ela não tira, a meu ver, a realidade aos heterónimos, apenas os distingue. Resta trabalhar a combinação das duas estruturas.

Gostei muito do que diz sobre P.[essoa] e a cultura portuguesa (a «ocultação erótica», a tristeza e passividade), sobre o significado da colaboração na «Renascença portuguesa». Parece-me poder concluir que a cultura inglesa de P.[essoa] lhe permitiu consciencializar uma realidade nossa. Um holofote na noite; outro é Ol.[iveira] Martins; outro talvez Camões, e poucos mais há.

Mas depois de tudo lido fico com esta ideia: ao fim e ao cabo a superação da «ausência», da «impotência» etc. é de ordem estética. Pessoa criou Formas. Em certo momento as s[uas] palavras fizeram-me entrever R.[icardo] Reis como uma daquelas plantas que nascem nos intervalos das rochas; Campos como outra que rasteja ao sol. Era a teoria da obra de arte como «animal» que vinha à superfície. O que repõe por outros caminhos o problema da «realidade» dos heterónimos. Por outras palavras: as formas de Pessoa não são apenas veículos, mas elas mesmas realidades autónomas que estão a pedir um estudo quase impossível.

Penso que a cultura portuguesa ficou substancialmente enriquecida com este seu trabalho. Escrevo-lhe só p[or]q[ue] não pude conter a emoção que me deu a sua leitura.

Mas também desânimo ante a dificuldade de entender em síntese essa cultura. É involuntariamente, sem querer que o tento. Talvez (pa.[ra] informação) lhe interesse saber que me tocam fundo os versos do António Ferreira

Eu desta glória só fico contente
Que a minha terra amei e a minha gente

Ferreira não sabia talvez que estava dizendo «a minha cultura», mas no fundo não haverá tudo isto no fundo da Mensagem?

Um abraço do amigo
António José Saraiva
Em papel timbrado da Universidade Nova de Lisboa, provavelmente de 1973, data da primeira edição de Fernando Pessoa Revisitado: Leitura Estruturante do Drama em Gente (Porto: Editorial Inova) e uma das 31 cartas que António José Saraiva (1917-1993) endereçou a Eduardo Lourenço, entre 1962 e 1987.