As Saias de Elvira e Outros Ensaios, 2006 Lisboa, Gradiva
As Saias de Elvira, de Eduardo Lourenço, é uma colectânea de ensaios que cruza com grande agilidade a análise social e a crítica literária. Na verdade, será produtivo começarmos pelo texto mais antigo aqui recolhido, que aparece no fim do volume, um ensaio sobre a “crise do casamento” publicado em, 1968 na revista O Tempo e o Modo. Este texto é ao mesmo tempo uma reflexão sobre as sociedades ocidentais em mudança (num ano central dessa mudança) e um panorama dos reflexos das novas mentalidades na literatura portuguesa. […] É também um momento histórico em que se desagregam as estruturas ancestrais do cristianismo, fundamentos da nossa ética durante séculos. Eduardo Lourenço surge aqui no auge dos seus poderes de percepção e subtileza, menos olímpico e mais imediatamente empenhado num mundo de que é ainda agente e não apenas testemunha. A crise da mundivivência cristã do amor e da sexualidade serve como pano de fundo para uma viagem pela ascensão do romance. De Dulcineia a Bovary, a ficção surge como manifestação da subjectividade, de um tempo que descobre a História e reinventa a História como ficção. É este o segundo objecto de estudo destes ensaios, nomeadamente no romance português, de Almeida Garret a Almeida Faria.[…] Elvira é a musa do poeta francês Lamartine e representa genericamente a mulher idealizada no romantismo. Eça de Queirós, no seu realismo programático, anuncia uma rejeição desse “rumor das saias de Elvira”. Ou seja, declara a vontade de abandonar a musa romântica e acolher o eros realista. Sucede que nesse programa surgem alguns desvios e paradoxos. Por um lado, Eça era um romântico recalcado, e nunca o seu “realismo” é verdadeiramente vivido: tudo acontece como se o “realismo” de Eça fosse ainda o remexer nas cinzas românticas. Eduardo Lourenço explica isso mostrando como Eça criou a sua Elvira na figura de Amélia (personagem de O Crime do Padre Amaro). É uma musa mais sexualizada que as de Camilo, mas ainda tributária de um mundo antigo, não emancipado, quanto mais não seja porque está obcecado com a profanação.
In Pedro Mexia “O manto diáfano”, Diário de Notícias, 6ª, 24/2/2007.